As pessoas que têm ido com frequência à Missa nesta Quaresma, devem ter notado, entre a oração após a Comunhão e a bênção final, o padre estender os braços e fazer uma oração diferente sobre os fiéis, como para abençoá-los.

Não, a oração pós-comunhão não ficou mais longa. Nem a bênção final se adiantou. Há realmente uma oração “nova” presente no Missal.

O costume nos parece novo porque, de fato, tais orações só foram aparecer na 3.ª edição típica do Missal Romano, publicada no começo dos anos 2000; e entre nós só agora, com a tradução brasileira desta edição finalmente pronta e publicada.

Oração sobre o povo para o 4.º Domingo da Quaresma.

Todavia, não obstante a novidade, as orações de que falamos são antiquíssimas e bastante tradicionais no rito romano — tendo desaparecido mesmo só nos anos posteriores à reforma litúrgica pós-conciliar. 

Dos fiéis que assistem à Missa segundo o rito antigo, por exemplo, as “orações sobre o povo” (ou orationes super populum, como se chamam em latim) são velhas conhecidas. Ligadas às antigas estações quaresmais romanas, já no Missal de 1962 elas são prescritas para os dias feriais da Quaresma (ou seja, de segunda a sexta-feira), sendo precedidas pelo aviso (de um diácono ou do próprio celebrante): Humiliate capita vestra Deo — ou seja, “Humilhai”, abaixai, inclinai “as vossas cabeças diante de Deus”.

A atual edição do Missal Romano conservou esta exortação prévia: “Se se usa a oração sobre o povo ou uma fórmula de bênção solene, o diácono diz: Inclinai-vos para receber a bênção” (Instrução Geral do Missal Romano, n. 185). Todavia, elas constam agora também nos domingos, mas são ad libitum, ou seja, não é obrigatório dizê-las. Se as temos escutado com frequência, é porque constam nos formulários para cada dia específico da Quaresma. 

Porém, mais do que acolher a bênção “porque está escrita”, convém conhecer também sua origem e história, de modo inclusive a apreciá-la melhor.

Uma oração bimilenar

O Pe. Josef Andreas Jungmann, famoso liturgista do século XX, rastreia as “orações sobre o povo” em sua obra Missarum Sollemnia, ao tratar dos ritos conclusivos da Missa romana [i]. 

Ele introduz o assunto observando que o costume de despedir o povo com uma oração final e uma bênção, “como elemento fixo da Missa”, aparece “não só na antiga liturgia romana, mas também nas egípcias e siríacas, e isto já nos documentos mais antigos… de modo que se pode considerar muito bem uma tradição desde o século III pelo menos”:

Com a ação de graças após a comunhão, a função religiosa chegou ao fim; a reunião pode agora ser dissolvida. No entanto, o homem antigo, com o seu forte senso de forma e de ordem, não permitiu durante muito tempo que isto se fizesse sem cerimônias. O fator decisivo era também a consciência dos cristãos de formarem uma comunidade constituída em Cristo, que, precisamente devido a esta função religiosa, estava no seu ponto mais forte. Era natural que, antes de se separarem uns dos outros, eles quisessem manifestar este laço de união pela última vez, a fim de que, mesmo depois do ato litúrgico, continuassem a sentir-se unidos pelos laços sobrenaturais que tinham sido reforçados durante o serviço religioso. Por isso, o anúncio do fim da cerimônia era acompanhado de uma bênção final, com a qual a Mãe Igreja desejava fortalecer os seus filhos que regressavam ao mundo. Esta bênção mudou consideravelmente ao longo dos séculos, desapareceu e depois foi reformulada, duplicada e até triplicada, transformada em orações finais de ação de graças e invocações que acabaram por se tornar uma oração privada (n. 622).

Sobre a sua forma e o seu conteúdo, o mesmo investigador anota que:

Nestas orações, é notável que os destinatários da bênção não são designados pela palavra “nós”, ou seja, o celebrante não se inclui nos que devem tomar parte nela; fala, antes, de “vossos servos”, “vosso povo”, populus tuus, ecclesia tua, familia tua etc. [...] Outro traço característico da oração com que os fiéis são despedidos todos os dias é que os benefícios pedidos, isto é, a proteção contra os perigos, a saúde da alma e do corpo, a preservação do pecado, são, ao contrário das outras orações, expressamente pedidos para sempre: semper, iugiter, perpetua protectione etc., tal como no fim da nossa atual fórmula de bênção rezamos: Benedictio... descendat super vos et maneat semper [“Desça sobre vós e permaneça para sempre a bênção…”]. É compreensível que nesta bênção se incluam muitas vezes preocupações materiais, [sendo esta] a fronteira entre o culto divino e os deveres mundanos, o eterno e o temporal (n. 624).

Eis-nos aqui, portanto, diante de um cuidado materno da Igreja para com seus filhos. Assim como Cristo preveniu seus discípulos dizendo: “Eis que vos envio como ovelhas no meio de lobos” (Mt 10, 16), sua Esposa também não quer iludir-nos. Por isso, fortalece-nos com a sua bênção a fim de que, deixando o templo de Deus, a casa santa onde Ele habita, nem por isso deixemos de estar na presença dele, nem por isso percamos o seu favor, a sua graça, recebida durante as cerimônias sagradas. 

Tudo isso pode ser dito, porém, de qualquer uma das orações que fazem os sacerdotes logo após a Comunhão. O que a oratio super populum quaresmal tem de diferente das demais, no fim das contas?

Bênção especial para a Quaresma

Deve-se levar em conta, primeiramente, que é controverso o motivo por que tal oração sobre os fiéis só se faz durante os dias de preparação para a Páscoa. O monge Amalário de Metz, do século IX, faz observar com razão que, nesta prece, 

os soldados de Cristo são enviados ao combate contra o antigo inimigo. Se é necessário estar preparado o tempo todo para a guerra contra os ataques e as insídias dos inimigos, quanto mais no campo de batalha! Nosso adversário sabe que, no tempo quaresmal, a Igreja inicia contra ele um combate singular; por isso, se encontra uma pessoa negligente, investe com mais força para arrebatá-la e destruí-la. Nosso sacerdote, como prudente agonóteta [ii] e lutador, quanto mais vê os soldados em grande perigo, tanto mais amplamente os mune com sua bênção. Nossas armas contra o diabo são a humildade e as demais virtudes. Quer o nosso sacerdote que estejamos revestidos de nossas armas: por isso ordena através de um ministro que inclinemos nossas cabeças diante de Deus, e então infunde sobre os soldados a proteção da sua bênção. A bênção do sacerdote conserva um antigo costume: o de ser dada no final. O patriarca Jacó abençoou os seus filhos nos instantes finais de sua vida (cf. Gn 49, 28-29.32: “Foi assim que abençoou cada um deles, com bênçãos próprias. Depois ordenou-lhes: Vou unir-me ao meu povo; sepultai-me com meus pais… Tendo acabado de dar estas ordens a seus filhos, recolheu os seus pés para o leito, e morreu”), Moisés fez o mesmo (cf. Dt 33, 1: “Esta é a bênção, com a qual Moisés, homem de Deus, abençoou os filhos de Israel, antes da sua morte”) e finalmente o próprio Senhor Salvador [...], antes de sua Ascensão aos céus, abençoou os seus discípulos (cf. Lc 24, 51). Em suma, para silenciar os outros exemplos dos Santos Padres, digo por brevidade: quando temos um trato familiar com os servos de Deus segundo o costume da nossa religião, antes que deles nos separemos, por último nós lhes pedimos a bênção [iii].

Observando que tais orações não se parecem com as habituais preces que se fazem na Missa, o Pe. Adrian Fortescue argumenta que, talvez, elas sejam um “remanescente das Vésperas”, rezadas como eram após a Missa no tempo da Quaresma [iv]. 

O Pe. Jungmann faz notar, porém, que “é precisamente na Quaresma que se conservam antigas tradições abandonadas no resto do ano litúrgico”. Não se deve excluir a possibilidade, portanto, de que tais “orações sobre o povo” estivessem presentes em outros tempos litúrgicos. O fato de não fazerem nenhuma menção à Sagrada Comunhão que se acabara de receber, somado à exortação inicial de fazer uma inclinação diante de Deus, leva o historiador a crer que estamos diante de fórmulas inicialmente prescritas para recitação apenas sobre penitentes públicos — ou seja, pessoas que estavam reparando pecados graves que cometeram. São Gregório Magno é quem as teria limitado ao tempo da Quaresma, levando em conta a disciplina até então em vigor para o sacramento da Penitência. 

Com o tempo, porém, e dada a própria formulação das orationes super populum (em geral vagas e indefinidas, podendo aplicar-se tanto às necessidades corporais quanto às espirituais), o rito foi perdendo seu caráter penitencial e hoje não passa de “uma bênção que se conserva no tempo santo da Quaresma como um venerável vestígio de antigas tradições” (Jungmann, op. cit., n. 629).

Farricocos da Procissão do Fogaréu, em Goiás Velho. Assim se vestiam os penitentes públicos nas antigas procissões de Semana Santa.

O resultado final de sua reinserção nos livros litúrgicos, desde 2000, é que, neste tempo tão propício à oração e à penitência, todo o povo de Deus pode sair duplamente “abençoado” do santo sacrifício, pronto para continuar travando o combate espiritual da Quaresma. Pois as orações sobre o povo, de fato, “enriquecem a forma habitual da bênção, antes da despedida do povo de Deus”. Sua restauração sob o pontificado de São João Paulo II deixa entrever, aliás, “o sentido da traditio do novo Missal, que não despreza nenhuma forma litúrgica anterior autenticamente romana”, já que “uma grande parte destas orationes super populum são tiradas do Missal de 1962, e outras, dos excelentes formulários dos antigos sacramentários” [v].

Quem sabe um dia, então, não venhamos a manifestar o mesmo apreço que tinham por tais bênçãos os cristãos romanos dos primeiros séculos? A esse propósito, o Pe. Jungmann registra o seguinte fato, ocorrido no ano 538:

O Papa Vigílio acabara de distribuir a Comunhão na Missa estacional da festa de Santa Inês, quando apareceu um enviado do imperador para o prender e levar para Bizâncio. O povo não o abandonou, mas seguiu-o até o navio, pedindo-lhe ut orationem ab eo acciperet — “que recebesse a oração dele”. O Papa acabou por rezar a oração, à qual todo o povo respondeu: Amém, e o navio zarpou (n. 624).

Notas

  1. Os trechos aqui citados foram todos traduzidos por nós a partir da versão espanhola da obra: El Sacrificio de la Misa: Tratado Historico-Liturgico, tomo 2. Madri: BAC, 1951, pp. 1147ss. No texto, deixamos referenciados só os parágrafos de onde foram tirados os excertos.
  2. Agonóteta: segundo o Caldas Aulete, assim se chamava, na Grécia, o “presidente dos jogos sagrados”.
  3. De ecclesiasticis officiis III 37: PL 105, 1156s.
  4. Cf. Pe. Adrian Fortescue, A Missa: um estudo sobre a liturgia romana. São Paulo: Flos Carmeli Edições, 2021, p. 288. Corrobora este parecer o fato de, nas férias da Quaresma, as orationes super populum conterem exatamente a mesma formulação das orações de Vésperas para cada dia — no Missal e no Ofício Divino antigos, é claro.
  5. Assim se expressou Dom Francesco Pio Tamburrino, ao apresentar a 3.ª edição típica do Missale Romanum, em 18 de março de 2002.

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